quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Pra que lado fica Meca? (2006)

Mohammed [quanta originalidade!] nasceu em um campo de refugiados, no Jenin, ao norte da Cisjordânia, e cresceu em meio ao embate de balas palestinas e israelenses e às empreitadas aliciadoras de grupos fundamentalistas. Como qualquer outro muçulmano, desde cedo, foi imbuído dos ensinamentos do Corão e achava bonito, e se orgulhava de ter o nome do Profeta (Maomé = Mohammed). Mas foi criado a encargo do medo, ao ver sua família se escondendo das bombas e das rebeliões freqüentes, mesmo no campo.
Allah era bom, era Deus de todos, seu pai lhe dissera. Então, que diferença fazia se os judeus O chamavam diferente? Mohammed tinha muitas perguntas. Dava muito orgulho ao pai, o qual respondia a todas de maneira simples para que o menino entendesse.
Seu pai, um dos agricultores da região, fazia questão de criar os filhos sob uma filosofia pacifista: a guerra em nome de Allah, ou em nome do que quer que fosse, jamais seria um caminho.
Mohammed tinha mais dois irmãos: Abdul-Haqq e Amala. O primeiro, o mais velho, era um ariano inquieto que falava da opressão e discorria sobre o medo e sobre a liberdade. A segunda, a caçula da família, era uma observadora. O velho pai tinha do que se orgulhar: apesar de todos os defeitos, seus filhos tinham personalidades fortes marcadas por grandes qualidades. O primeiro argumentava com paixão, era amante de discussões político-idealistas; Mohammed era perspicaz e parecia colocar no pai a imagem de sábio-santo-médico-professor-Freud-entendedor das coisas do mundo, fazendo-lhe perguntas incessantemente, e Amala, linda menina, observava com olhos e ouvidos sagazes, sem dizer muita coisa, mas deixando claro que entendia tudo o que se passava. Gostava de falar com Mohammed, em quem enxergava receptividade de idéias, porém seu pai se punha a ouvir algumas passagens e se orgulhava muito da filha também. Haveria de transformar-se numa grande mulher.
Um dia, o pai saiu para trabalhar. Os três filhos estavam em casa, quando começam a ouvir gritos, disparos vindos da rua e vêem uma estranha luminosidade da janela: aparentemente o Cirque du Soleil havia chegado ao campo, enviado pela ONU com a missão de promover a paz na região através da política "troque seu punhal, sua pedra, sua metralhadora, sua bazooka, seu revólver, seu estilete, sua tesoura, seus explosivos por um ingresso". Do outro lado da rua, havia fogo, pessoas correndo desesperadas, verdadeiro tormento. Abdul-Haqq imediatamente levou os dois irmãos para o esconderijo, numa espécie de porão construído por ele e pelo pai para servir de abrigo em caso de ataques.
-- Fiquem aí e não saiam em hipótese alguma.
-- Mas a gente vai passar fome.
-- Ah, toma.
-- Tâmaras? O que eu quero com tâmaras?
-- O que vocês querem?
-- Macarrão instantâneo.
-- Não tem.
-- Então tá, dá aqui as tâmaras.
-- Toma. Vou indo.
-- Aonde?
-- Vou atrás do papai.
Abdul saiu da casa com um facão de cozinha na mão. Lá fora, não se podia definir direito a que aludiam todos aqueles sons: às vezes, ouvia zunidos, explosões, noutras, somente os gritos e choro. Pôs-se a correr em direção ao campo à procura do pai. Não o encontrava em parte alguma, a plantação pegava fogo, muitos corriam pra lugar nenhum. Então avistou: encostado ao que sobrou de uma cerca, tossindo e com a enorme barba pegando fogo, lá estava ele.
-- Pai, pai!!!
-- Abdul, apaga! Apaga!
-- Sim, é pra já! - e começou a golpear a barba do pai com a própria camisa.
-- Ufa...
-- Pai, se apoie, ande. Vim pra te ajudar. Temos que sair daqui!
-- Não! Não dá mais... pra mim...
-- Deixa disso! Venha! - e puxou o pai para si. Nisso, as duas pernas ficaram e o pai soltou um tremendo berro.
-- É o fim pra mim! Volta... Vai pra casa! Teus irmãos!
-- Não, pai...
-- Estou sem as pernas, não vês?! Sem elas, não poderia mais trabalhar!
-- Não, pai... A gente dá um jeito! Há cadeiras de rodas!
-- Como é que eu vou pagar uma cadeira de rodas?!
-- Mas pai, o programa do Netinho, pai... A gente vai pr'o Brasil e (...)
-- Não filho - e tosse mais ainda -, chegou o meu fim. Eu estou bem. Vou morrer. Um dia, todos iremos. Agora, volte pra casa!
-- Tá certo, pai... T__T
-- E lembre-se filho: a guerra não pode ser um caminho!
-- Ok, papai.
-- Ah, e mais uma coisa filho. A Gisele... A Gisele Bund... Bundxxion... Bundich... Bem, apenas guarde isso: é 86-61-86!
-- Ok, papai. Adeus... ó.ò/
Já em casa, encontrou os irmãos com os dedinhos das mãos entrelaçados, olhares fixos. Achou melhor não dizer o que, de fato, havia acontecido.
-- Amala, Mohammed, preciso falar com vocês.
-- E papai? E papai?! - perguntou ansiosamente Mohammed.
-- Papai, sinto dizer, não está mais entre nós. Ele... ele encontrou seu lugar.
-- Que história é essa Abdul?! - indagou Mohammed.
-- Estou dizendo, Mohammed, que papai acabou esbarrando em um grupo de ativistas da CIVC (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) pela manhã e decidiu seguir com eles pelo mundo, na esperança de ajudar as pessoas vítimas de guerras.
-- Uau, que bonito. - concluiu Amala.
-- Papai finalmente achou seu lugar. Isso é tão mágico. - e uma luz desceu dos céus e iluminou Mohammed. Era uma lanterna: os vizinhos haviam entrado na casa para socorrer os três irmãos.
-- Ó meus pequenos, como estão? - perguntou a vizinha gorda.
-- Estamos bem, senhora.
-- Ficamos sabendo sobre seu pai.
-- Estamos felizes por ele. Papai encontrou seu lugar. - disse, ingenuamente, Mohammed.
-- Ah... Meus pequenos, (...)
-- Não se preocupe, senhora. O pai vai se dar muito bem na CIVC. - alegou Abdul-Haqq, com uma piscadela. A vizinha entendeu.
-- Bem, podem ficar em casa por hoje. Teremos carneiro para a janta.
Abdul-Haqq agora era o chefe da família. O poderoso chefão da máfia, o lobão alfa da alcatéia, o zangão da colméia, o cabeça do grupo, o responsável, o intelecto, o provedor, o pé principal do tripé, enfim, e precisava decidir sobre o futuro dos dois irmãos, além do seu próprio. Só havia um caminho: fugir dali. Daquela guerra. Fugir como covarde e sobrevivente ao invés de morrer corajosamente, afinal, mais vale viver e falar da covardia com coragem do que morrer sem poder falar da própria coragem e da covardia alheia. [Sou péssima com esse tipo de enrolação... Hehe.]
Estava decidido. Viajariam rumo a Jordânia e de lá, só Allah sabia para onde. Juntaria as coisas, arrumaria um dromedário [é, não é camelo, não senhor!] e daria no pé. Mas, então, como deixar a Cisjordânia? Os arredores estavam entupidos de judeus...
-- Dona Sabah, a senhora me dá licença? Tenho que resolver uns assuntos particulares. - disse Abdul.
-- Vai meu filho, mas vê se volta depressa. A coisa aqui já está chegando ao nível do PCC... Onde esse mundo vai parar, pelo amor de Allah?!
-- Não demoro. Pelo menos, acho que não.
Saiu. Sabia que o Cirque du Soleil não teria as melhores acomodações. A lona fora montada nos arredores da vizinhança. Era enorme: Abdul não teve problemas em localizar o circo. Tinha o plano: 1) encontraria uma menina desacompanhada, carente, com certa influência no recinto; 2) bancaria um homem digno e a pediria em casamento; 3) a embebedaria, caso o item 2 não funcionasse; 4) partiria para a agressão se o item 3 não funcionasse; 5) sairiam os quatro da Cisjordânia com a companhia do Cirque du Soleil, rumo a qualquer lugar.
Ao chegar, avistou milhares de moças vestidas da maneira mais imprópria possível: roupas coladas ao corpo, algumas com pompons, outras fazendo espetaculares demonstrações de elasticidade. Foi então que a viu: cabelo escuro, chanel, olhos escuros, estatura média, um corpo difícil de descrever, dada a eventual composição da moça: um pé sobre a cabeça, o outro apontando para o ar, enquanto os dois braços a sustentavam. Alguém gritou Christine. Ela atendeu, só que em francês.
Foi então que Abdul percebeu... Como bater um papo com ela? Ele sabia umas míseras palavras em inglês e nem sabia se a moça falava ou não. Bom, dizem por aí que a linguagem corporal é tudo. "Vou oferecer Arak e deixar a moça doidona.".
-- Hi.
-- Hi. - disse Christine.
-- Want? - e oferece um pouquinho.
-- What?
-- Arak.
-- No... You.
-- You? - Abdul, confuso, pensa estar gafando.
-- No, you, you.
-- Ah, oui, oui. - Abdul dando demonstrações de seu vasto conhecimento poliglota.
-- Oui?
-- Oui... No? - Abdul...
-- No! Oui, oui! Come, come! - e Christine agarrou Abdul.
Abdul gostou.
Enquanto isso, Amala e Mohammed divertiam-se assistindo à perseguição do carneiro escolhido para oferenda. Dona Sabah começava a se estressar com os meninos.
-- Chega! 'Cês vão comer Habib's!
-- \o/ \o/ \o/ \o/ \o/
-- Parem de pular, ou vou doá-los à brigada militar do Hamas!
-- lol lol
-- Assim, sim.
Dali a alguns minutos, a casa silenciou. Todos rezavam, virados para Meca, ao pôr-do-Sol, como determina o preceito muçulmano. O problema é que, no dado momento, enquanto todos os palestinos oravam, Abdul-Haqq via-se confortavelmente impelido a faltar para com os ensinamentos da doutrina. Allah o perdoaria, tinha certeza. Se não tinha, é porque também não estava pensando nisso. Absolutamente.
Após a janta, Mohammed e Amala começaram a conversar:
-- Não é que o capitalismo seja um sistema elitista, é só que os homens que o discutem são ricos demais. - disse Mohammed.
-- É por isso que eu prefiro falar sobre sexo! - exclamou Amala.
-- Na minha singela opinião, Freud foi o primeiro sexualista escancarado da história! - começou Mohammed.
-- E eu com isso... Quer ouvir uma coisa realmente importante que pode mudar o mundo como o conhecemos de fato? - desafiou Amala.
-- Diga.
-- 2 + 2 = 5.
-- UAU. O_O
Pela manhã, Abdul-Haqq acordou Christine gentilmente.
-- Christine! Christine! - enquanto apontava-lhe a meio centímetro do nariz uma folha de papel com alguns rabiscos.
-- Ma qui merde!!!
-- Nhã? - pobre Abdul, criatura confusa.
-- What?
-- Look!
E, através de uma rústica história em quadrinhos, Christine pôde entender o que se passava. Os últimos quadrinhos remetiam à cerimônia de casamento. Então ela, complacente, fez aquela mímica simpática dizendo "sim, tudo bem, eu concordo, desde que não nos casemos. Foi muito bom, mas foi só por uma noite.". Mencionou, depois, algo como uma "ocidental relationship". Ele não entendeu a última parte, mas tudo bem.
O Cirque du Soleil partiria em 10 dias rumo a Jordânia e depois seguiria para a Arábia Saudita; dali, seguiria para o Iraque e, do Iraque, tomaria um avião em direção a Índia e, depois, a China.
-- Mohammed, Amala, tenho boas notícias. Vamos viajar.
-- Viajar?! Pra onde?
-- Há um itinerário. O negócio é saber onde parar. - respondeu Abdul.
-- Opa. Quais são as opções?
-- Muitas. Mas a que conta é que deixaremos a Cisjordânia.
-- E se papai tentar nos encontrar? – perguntou Mohammed.
-- Não se preocupem. Eu vou deixar a Dona Sabah avisada.
Em 10 dias, estavam com tudo em ordem para a viagem. Abdul-Haqq até tentou escapar aos ensinamentos mais algumas vezes com Christine, mas não obteve grandes resultados. Quando a mulher não está a fim, ela não está afim, isso Abdul pôde compreender rapidinho.
Partiram. Passaram pela Jordânia, pela Arábia Saudita, pelo Iraque, pela Índia... Entraram em contato com cristãos, ateus, agnósticos, hinduístas, budistas, ciganos e aprenderam a fazer malabarismo e passes de mágica. Mas, como bons seguidores do Corão, não esqueciam as orações, tampouco esqueciam outros tantos costumes, os quais não menciono porque, sei lá, muita enrolação. O circo fazia tremendo sucesso por onde quer que passasse e tanto Amala, quanto Mohammed e Abdul se divertiam bastante com os artistas, porém, era hora de assentar e parar de abusar da hospitalidade da companhia.
Decidiram sossegar no Nepal, mais precisamente na Cadeia do Himalaia... Sim, falo do Tibet. Aparentemente, os três ficaram impressionados com o tanto de neve que havia por lá.
E é isso aí. Antes de se despedir de Christine, Abdul perguntou a um cara o que significaria "ocidental relationship". Após esclarecida a dúvida, disse a Christine, naquele inglês bem arcaico: "love to ocidental relationship to you". Mohammed se despediu dos amigos macacos que havia feito na viagem e Amala ficou com um tufo da barba da mulher barbada de presente.
Em companhia dos monges, os três teriam que aprender a falar mais baixo... Não conseguiam acreditar no quanto suas vidas haviam mudado. Muçulmanos no Tibet.
-- É estranho, não é? - perguntou, distraído, Mohammed.
-- O quê? - perguntou Amala.
-- O pai ter ido embora assim sem nem ao menos, sei lá, deixar a gente em algum canto seguro. - desanimou Mohammed.
-- Sabe por que estamos aqui, Mohammed? - disse Abdul.
-- Ué, por causa da guerra, não é?
-- Sim, mas... Bom, deixa eu contar pra vocês. Papai não partiu com os ativistas da CICV simplesmente. Ele deixou toda esta viagem planejada pra gente.
-- UAAAAAAU. Papai é realmente um cara sabido! - Mohammed exclamou todo contente.
Depois de um tempo, Amala viu Abdul sentado a um canto do templo, admirando a vista. Chegou perto do irmão e indagou:
-- Papai não está com a CICV, não é?
-- Não, não está.
-- Ele está onde?
-- Ali ó. - e apontou para o céu.
-- A gente vai contar para o Mohammed?
-- Não... Melhor assim.
-- Você o viu? - perguntou Amala.
-- Sim.
-- Ele te disse alguma coisa?
-- Disse que a guerra não pode ser o caminho. Papai era um homem que sabia das coisas.
-- É, era sim.Os dois silenciaram por um momento. O Sol começou a baixar.
-- Tá na hora. Vem. - disse Abdul. E seguiram os dois para um local especial do templo, e ajoelharam, cada um num canto. Até que Amala percebeu e falou:
-- Abdul.
-- Que é?
-- Pra que lado fica Meca?
-- ...
-- É, foi o que eu pensei. Vou virar cristã.
-- Estamos no Tibet. - respondeu Abdul.
-- E o que tem?
-- Por que não budista?
-- O deus dos cristãos é mais bonito.
-- Ah.
-- E você? - perguntou Amala.
-- Eu o quê?
-- Vai fazer o quê?
-- Pretendo ter mais dessas 'ocidental relationships'. De preferência com as medidas 86-61-86 da Gisele Bund... Bundxxion... Buntche... Enfim, com ela.

Um comentário:

Anônimo disse...

genial esse texto
=D