sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Bob Moz

Ela tinha então 16 anos. Era fã do The Who, da Janis Joplin, do The Doors e do Bob Marley; vivia cercada por essas más influências que ainda respiravam o ar psicodélico dos anos 60-70. "Filha, você precisa estudar, suas notas estão horríveis. Afinal, onde é que você quer chegar assim?", perguntava o pai; "filha, mas que visual mais descuidado: essas unhas, essa juba. Que vão pensar? Que eu te criei pra espantar ladrão, mau olhado?! Isso não é jeito duma menina de família se portar!", dizia a mãe. Para todos os tormentos, ela só tinha uma única e singular resposta: "paz e amor, bicho".
Num desses encontros muito loucos, ela conheceu ele. E ele era o máximo: cabelo bagunçado, óculos John Lennon, um poeta falido que, bêbado, era um sucesso. Dizia que tocava violão como os anjos dedilham suas arpas. Vez lhe perguntaram:
"-- E tu já viu anjo, cara?
-- Se eu já vi anjo? Já vi muitos. Tô olhando para um agora." – e ela derreteu. Já não ligava para as arpas, para os anjos, para o violão que, por sinal, ele não tocava... Mas tocava gaita. E digo mais: aprendera com o avô, um depressivo-compulsivo-panteísta que dizia que sua alma encontrava-se na tal gaita e que, por isso, o som que saísse dela devia ser triste e obsoleto, como a sua vida. Então o avô morreu, e ele a guardou em memória da vida triste e obsoleta do avô.
Enfim, continuando, os dois compartilharam o amor livre... Descompromissados, altamente cativados, mas rusticamente interessados em desvendar mais daquela criatura que, juravam, tinham a oportunidade de conhecer muito melhor do que tantos outros, passaram a noite curtindo um ao outro, com aquelas velhas dúvidas nas quais estes enlaces sentimentais – hedonista-tentadores – resultam: ... Er? Alguma dúvida?
Pois bem. Depois de alguns pegas, ele disse que estava com uns planos diferentes: estava planejando rodar o mundo com seu violão, levando mensagens de paz a todos que quisessem ouvi-lo cantar "no woman, no cry" por uns trocados. Era um cara à frente de seu tempo, visionário e que, garantiu, se pudesse, a levaria a Amazônia. Ela não quis. Disse "que barato!!!", mas que, infelizmente, tinha outras idéias na cabeça: faria a apologia da venda da coca a R$3,00 o litro, e descobriria a cura para a cor da grama. Queria porque queria ver grama azul. Havia flores azuis, por que não grama? Injustiça descabida essa...
Um dia, estava passeando tranqüilamente por aí, quando bate a ânsia, e o almoço mais parte das tripas decidem voar-lhe boca afora. Era isso. Estava grávida dele. Carregava um princípio de gente no útero. "Opa, não sou estéril como dissera o guru Sandro...". Resolveu fugir de casa e se refugiar numa comunidade alternativa a alguns quilômetros de Sorocaba, fundada por um amigo seu.
Ficou por lá e deu à luz um menino, a quem chamou de Bob Moz(art). Bob Moz foi criado sob alguns poucos princípios da comunidade. Na real, apenas dois. Muito únicos e singulares: "paz e amor".
-- Por que o céu é azul, guru Sandro?
-- Na real, Moz, não é azul. Aquilo lá é amarelo.
-- Amarelo não é isso aqui que eu estou vestindo?
-- Você acha que é?
-- Sim... Não é?
-- É verde abacate.
-- Mãeeeee, o que é a vida?
-- A vida é um espasmo temporal.
-- E o que é isso?
-- É uma simples complicação.
-- Mãeeeee, você é muito paradoxal.
-- Você viu isso Sandro?! Ele disse paradoxal!
Pode-se dizer que Bob Moz era o cara mais esclarecido da Terra. Fora criado com ajuda de Sandro e mais alguns amigos dela. A comunidade era, de fato, muito unida. Todo mundo ajudava todo mundo e já havia crianças com quem Bob Moz pudesse brincar. Conheceu Maurício, Garibaldi, Capivara, Marissol, Iara e outras tantas pestes com quem acampou, jogou bola, brincou de esconde-esconde, fez teatrinho, ficou bêbado pela primeira vez.
Já com 16 anos de idade, sentiu uma pontada estranha no estômago quando, numa tarde qualquer, sentou ao lado de Iara, sua melhor amiga. Beijou-a. Achou que era isso a que sua mãe se referia quando falava de amor. E até que gostou de amar Iara.
-- Mãe... O que é o amor?
-- O amor... O amor é.
-- É o quê?
-- Ele não é nada. Ele é.
-- É somente?
-- É.
-- Mãeee, quem é Jesus Cristo?
-- É um cara parecido com a gente, filho.
-- E por que tem quem pertence ao exército dele?
-- Nas camisetas?
-- É.
-- Há diferentes tipos de gostar.
-- Isso é gostar?
-- Depende.
-- Do quê?
-- De o líder do exército não reencarnar...
Bob e sua mãe eram muito amigos, compartilhavam tudo um com o outro. Ele gostava de passar tempo com ela para fazer-lhe perguntas, porque ela parecia ter resposta para tudo e isto o irritava, e instigava a continuar perguntando.
Numa tarde qualquer, Bob decidiu contar à mãe sobre Iara.
-- Mãe, eu acho que amo a Iara.
-- Rolou alguma coisa?
-- Sim.
-- Meu menino já tá homem.
-- Isso me deixa homem?
-- De certa forma. O que aconteceu exatamente?
-- A gente curtiu. E foi bom. E eu também senti uma pontada no estômago.
-- Me fala dela, Bob.
-- Ela é bonita, tem um sorriso lindo. Me deixa, sei lá, louco. E escreve poemas bacanas.
-- Tem mais coisa?
-- Não sei... Tem diferença entre gostar e amar?
-- Gostar tem condição.
-- E amor é?
-- Amor é...
-- Então acho que não é amor.
-- Goste dela então, Bob.
Depois de alguns meses, Bob reparou que sua mãe e Sandro andavam esquisitos. Sumiam de repente, trocavam mais olhares do que o normal e algo pegou o Bob de jeito: ele tremeu à possibilidade de os dois estarem se amando. Foi como se alguém o estivesse apertando lentamente, sua testa esquentava e ele pensava em todas as ínfimas coisas que os dois pudessem fazer juntos. Sandro a veria sorrir, a tocaria, a ouviria responder a tudo, incrédulo, bobo e irritadamente interessado.
Ela tinha então 32 anos. Era ainda aquela menina louca em sintonia com tudo, que curtia uma boa com os amigos nos luaus, porém, agora, num corpo de mulher mais entendida do esquema. Conservava os traços delicados, os cabelos desarranjados, os vestidos leves. Era uma mulher bonita sim. E Bob sabia disso, não porque fosse sua mãe, mas porque era e pronto.
Meio espantado, foi falar com Maurício:
-- Maurício, meu peito tá queimando.
-- Por quê?
-- Acho que minha mãe tá amando o Sandro.
-- Ah meu querido, depois de tanto tempo de amizade, a coisa só tinha que colorir um pouco, né?!
-- Bom, eu só sei que acho que não quero que a coisa fique com cor.
-- Ai, que nóia. Por que não?
-- Porque ele é o Sandro. O que ele quer com a minha mãe?
-- Ele quer a sua mãe, bofe.
-- Bom, tem que parar. Ele deve estar, não sei, sabe... com ela, entende?
-- Não, mas acho que sei o que se passa aí.
-- O quê?
-- Você está com ciúme.
-- Ciúme?
-- Ciúme é aquilo que a gente sente quando tomam o que é nosso por direito, sem a gente ter direito a nada.
-- Mamãe nunca me falou de ciúme.
-- A idéia era você não identificar, Bob. Neste mundo, a gente precisa é ser esperto.
-- Você sabe o que é ciúme?
-- Sei. Tenho ciúme da Iara.
-- Gosta dela? Mas eu pensei que você estivesse em outra... Aliás, outro.
-- É que ciúme a gente usa pra se referir à vítima de nossa pequena fúria.
-- Mas por quê?! Ela só está... Ah.
-- Isso mesmo. Você entendeu. Agora saia daqui antes que eu fique inconveniente.
Bob Moz saiu andando por aí, pensando nela. Até que sentiu um aperto no estômago, tontura e arrepiou por inteiro. Sentiu medo. Pronto. Sabia. Amava. Mas amar, talvez já amasse antes, então...(?) Saiu correndo na esperança de Sandro ter ido chatear outro para que pudesse conversar com sua mãe em paz.
-- Mãe, mãe!
-- Fala Bob.
-- Mãe, acho que eu te amo!!!
-- Eu também te amo, filho.
Não era possível. Não podia ser somente isso. Era mais. Queria curtir com ela também. Mas... Então, não seria estranho? Um filho com a mãe? Já aconteceu antes? Ora, não havia nada de estranho. Era só alguém amando outro alguém. Era!
-- Mãe, acho que você não entendeu. Eu te amo, mas eu quero algo. Eu quero você.
-- Ok. Está com vontade de me beijar?
-- Não..... Sim.
-- ...
-- Mãe?
E ela ficara sem resposta.

Nenhum comentário: