quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Quem dá a resposta?

Romildo adentrou a sala. Lá, havia três portas. Três portas e uma secretária, com cara de inteligente, sentada atrás de um balcão de mármore à direita.
-- O chefe?
-- Escolha uma das portas e prossiga pelas salas subseqüentes. - disse ela, em tom sério, mas com uma carinha simpática.
Romildo não entendeu direito o sentido daquilo. Mas tudo bem, tudo bem... Afinal, as regras não eram dele.
Ele parou diante das três portas. A primeira dizia "o infinito"; a segunda dizia "a dúvida" e a terceira, por sua vez, não tinha nome algum. Pensou que a porta da dúvida estava fora de cogitação; não conhecia certezas, mas também não gostava de dúvidas.
-- O senhor não tem muito tempo para decidir. Eu preciso chamar os outros.
-- Ah, sim, sim.
Optou pela porta sem nome. Caiu numa sala escura, com um feixe de luz pairando sobre uma cadeira de madeira. Pensou "é, acho que é só esperar, né?". E esperou. Esperou. Esperou pacientemente durante 40 minutos. Nada. Decidiu voltar e dizer à secretária que havia cometido um engano, que talvez aquela não fosse a porta; que o chefe deveria estar em uma das duas outras salas.
Quando abriu a porta pela qual havia entrado, caiu não naquela primeira sala, mas no que parecia ser uma garagem. Havia lá dois carros. Havia também algumas ferramentas espalhadas, duas bicicletas a um canto e uma bola de futebol na qual Romildo tropeçou. Assim que levantou, viu uma menininha passar e correr em direção à bola. Ele teve medo por um instante, mas percebeu que ela não o via. Ficou doido de vontade de ver se ela, além de não vê-lo, conseguia atravessá-lo, mas achou que seria uma "forçação" de barra um tanto quanto desnecessária. Por isso tentou ele próprio atravessar as paredes. CATAPLOFT! "Mas que saco!". E calou-se de supetão, pois não sabia se ela podia ouvi-lo. Só que não, também não o escutava.
Ela ficara segurando a bola durante alguns instantes, e ele não entendeu. Ficou espiando e percebeu que ela começava a chorar, encolhida. De dentro da casa, vinha um som de vozes nervosas; não dava pra entender o que diziam, mas não ficava difícil saber que se tratava duma briga. Romildo atentou para a menina, que encolhia mais, pondo-se ao lado das bicicletas. Foi quando uma das vozes ficou realmente alta, como se estivesse vindo de encontro a ele: "seu babaca! A Mimi vem comigo!".
A menina levantou a cabeça, ainda com os olhos turvos, e viu a mãe aproximar-se e pegá-la no colo no impulso. "E o papai, e o papai?!", ela perguntava, mas a mãe se limitava a responder "ele não vem com a gente, ele não vem!". Romildo observava aquilo atônito. Ouviu o pai berrar de algum dos cômodos, e resolveu entrar pra ver por que não vinha. A casa era espaçosa: sala grande, sofá de quatro lugares, uma cozinha de azulejos verdes e móveis mais antigos. Mas, como não visse ninguém, decidiu invadir mais. Em um dos quartos, finalmente, viu um homem numa cadeira de rodas, chorando.

Edileuza entrou na sala. Viu lá as três portas e a secretária, toda toda, parecia que ía pr'um baile funk. Pensou que aquilo ali não devia ser lugar pra tanta frescura e que "o chefe" comia ela toda a noite, de sobremesa.
-- Dá licença, eu queria falar co' chefe.
-- Escolhe uma das portas ali. Ah, e, por favor, sem chiclete, tá? - respondeu a secretária, com um sorriso sarcástico.
Sem muita paciência, escolheu a porta do nome bonito: "o infinito" e deu no que parecia ser um banheiro de boate, com espelhos manchados. "Aquela vaca deve tá rindo agora; ha-ha-ha-ha, quem foi que entrou no banheiro?! Ah, mas isso fica assim não!". E abriu a porta, esperando encontrar a secretária se matando de rir. Porém acabou num quarto de motel. Na beirada da cama, tinha uma mulher semi nua, acendendo um cigarro. Do lado, recostado, um homem uns 10 anos mais velho contando notas na carteira. Ele atirou as notas ao lado dela, na cama, e acariciou sua carne morena uma última vez. "Bom, querido, 'cê tem meu celular", disse ela. "Da próxima vez, quero te levar pra jantar, Silvana.".
Edileuza seguiu Silvana. Não ía ficar no quarto com aquele porco. Logo reparou que Silvana não podia vê-la. "Tu não tá com a cara boa." - comentou Edileuza, em vão. Silvana não ouvia não. "Deve ser alguma pegadinha isso aqui (...) Esse cigarro tá te deixando chupada... Sabe, eu também fumava bastante. Mas dei uma segurada; o cunhado de uma amiga minha morreu por causa que fumava muito. (...) Então tu é puta, né? É, vai entender, essa vida não é fácil não. Mulher é bicho forte, é sempre dura na queda. (...) Mas afinal 'cê tá com uma cara xoxa. 'Margura, parece 'margura que não acaba mais.".

Edileuza falava e seguia Silvana. Silvana tava indo pr'o ponto; alguma esquina onde tinham mais duas colegas. Silvana jogou o cigarro fora e chegou rebolando junto dum carro preto que se aproximava. O esquema era dois pra uma. Edileuza ficou olhando de longe, enquanto alertava "cuidado! Olha lá! Esses aí não tão com cara tão boa! Quando é mais de um, esse ar de esperto, desconfia! Silvana!"; percebeu que Silvana não tava muito em si quando topou, e resolveu ir com ela. Entrou no carro, mas era como se não estivesse lá.
O carro seguiu para um motel de quinta. No quarto, Edileuza, como bem tinha imaginado, viu que os dois tinham armado pra cima de Silvana. Usaram clorofórmio; Edileuza gritava, empurrava os garotos, chutava, mas nada pegava neles. Ela gritava "isso aqui é alguma brincadeira?! É alguma brincadeira?!". Até que, terminado o negócio, eles foram embora e deixaram Silvana machucada, desacordada no quarto. Edileuza não teve muito que fazer, senão ficar por perto.
Sussurrava pra ver se ela despertava, mas nada. Teria que esperar. Esperou. Esperou. Esperou pacientemente durante uns 35 minutos, até que Silvana levantou. Tudo rodava, seu lábio tinha gosto de sangue e seu olho direito não abria certo. A cabeça latejava; por entre as coxas dava pra sentir o molhado repugnante e ela sentia as pernas doídas pra fora da cama.
Levantou aos poucos, com raiva, toda zonza. Tinha vontade de chorar, mas não conseguia. Onde é que estava a porra do cigarro? Não, não. Não era hora pra fumar. Edileuza acompanhava a mulher com medo; queria dizer alguma coisa. Silvana caminhou lentamente para a janela. Era uma janela grande, daquelas mais antigas, mas espaçosa o suficiente para fazer o que tinha que fazer. Edileuza notou aquele olhar cego de Silvana; Silvana abrira a janela bem aberta e, com dificuldade, punha perna depois de perna pra sentar no peitoril. Não precisava de muita coragem. Edileuza começou a falar assustada "não faz isso não mulher! Faz isso não! Pára!!! PÁRA!!! Silvana!!!" - e Silvana olhou pra trás como quem ouviu.

Dudu desceu as escadas correndo, não quis esperar o elevador. Tinha as flores nas mãos, o perdão ensaiado. Marília tinha engravidado e ele ficara meio puto. Coisa não planejada; os dois empregados, porém no início da carreira ainda. Ela nem bem terminara a faculdade.
Ah, tudo bem, isso se ajeita, ele dizia. Estava com um cargo promissor. Se destacava nos cursos, cuidava do social, tinha tudo para montar um bom futuro e conseguir prover pr'um filho todo conforto possível. Mas, no momento... A coisa toda ameaçava desequilibrar.
Marília e ele haviam se conhecido numa festa, há uns três anos. Amigos em comum, baladinhas aqui e ali, conversas à toa, conversas mais intimistas; um dia a coisa rolou. E, ao contrário do que se pensava, eles até que estavam se aturando bem. Tinham planos, mais parecidos com idéias, é certo, mas ainda assim maquinavam morar juntos: acordar com os cabelos de um na cara do outro; ver quem atingiria o ápice do mau humor com as manias alheias, essas coisas de casal que se conhece, se adora, contudo não se atura por muito tempo quando colado.
"-- Sabe Marília, a verdade é que eu não planejei a minha vida ao teu lado. O que a gente vai fazer com um filho?!". Eram palavras duras; ele bem sabia que um punhado de flores não resolveria o problema. Ademais, arrependido ou não, ele dizia a verdade.
Atravessara o lobby com pressa. O paletó numa mão, as flores na outra. Não queria ter tempo pra pensar.

Corria muito, como se aquilo pudesse aliviar um pouco a ansiedade. Até esbarrar numa velhinha que lhe disse, após ouvir os insinceros pedidos de desculpas, "cuidado, garoto, desse jeito louco 'cê ainda é atropelado". Ele deu ouvidos e cessou a correria; caminhava agora, ironicamente pensando que tão logo fora-lhe dada a notícia de que seria pai, tão mais cedo ele corria para a morte sem poder. É... O Dudu já estava preso.
Foi quando ele resolveu sentar num dos bancos de uma praça, pra pensar direito. Encostado a um dos cantos do banco, havia esse cadeirante fumando. Ele fumava a intermináveis tragadas e tinha a cara vazia. Do outro lado, sentada, estava Silvana vestindo roupas insinuantes.
"Nada melhor do que meditar e encontrar a paz interior dividindo um banco com um aleijado e uma puta." - pensara. A verdade é que Dudu era um idiota e sabia disso. Tanto sabia que fazia de propósito, pelo prazer de provocar - aos outros e a si próprio.
-- Eu acho muito desumano compartilhar banco de praça com outras pessoas, sem saber o nome delas. Meu nome é Eduardo. E o seu, senhorita?
-- Edileuza.
-- Hm, Edileuza. E a senhorita trabalha em quê?
-- Por um acaso isso é problema seu?
-- Digamos que pode ser do meu interesse...
Ela simplesmente levantou e foi embora. Havia marcado com um cliente das antigas. Só que ainda era cedo. Mas não fazia mal esperar em outro lugar.
-- E o senhor, como se chama?
-- Romildo.
-- Faz o quê?
-- Faço porra nenhuma.
-- Soa produtivo.
-- Muito. Já ouviu falar em ócio produtivo de alto nível?
-- Não mesmo.
-- Pois é. Pratico há 3 anos, desde que me instalaram nessa cadeira.
-- Ao menos tá vivo.
-- À merda.
Romildo também foi embora e Dudu pôde desfrutar da solidão. Ele não pensou muito, apenas deixou as flores no banco e foi embora após uns 30 minutos. Caminhava normalmente, sem ligar pra muita coisa, até perceber uma placa, em frente a um estabelecimento parecido com uma loja, só que de vitrines vazias e porta preta, que dizia "quer a resposta?". Ele resolveu entrar.
Chegou no único atendente que havia, um menino de uns 17 anos trajando uma bermuda branca, e falou "eu quero a resposta".
-- Pra isso tem que falar com o chefe. Tá vendo aquele corredor? Segue por ele e vira na segunda à direita, depois na primeira à esquerda e então na segunda à direita novamente. É uma sala de espera; vão te chamar.

Ele foi sem grandes pretensões. Chamaram até que rápido. Quando adentrou a sala, viu a secretária à direita. E ela tinha um nariz de palhaço, daqueles vermelhos e bem redondos. Ele ignorou o fato e tentou ater-se ao que realmente interessava.
-- Por favor, eu queria falar com o chefe.
-- Escolha uma das três portas adiante.
-- Tá de palhaçada comigo, né?
Ela não precisava responder à pergunta.
Ele escolheu a porta da dúvida, afinal era por isso que estava ali. Além disso, achava o infinito uma coisa cretina e uma porta sem nome, algo provavelmente desinteressante.
Caiu numa calçada que dava de frente para o banco onde estivera. E, qual não fora sua tão grande surpresa, lá estava ele ao lado do aleijado e da puta. Vira toda a cena, desde o momento em que sentara, as conversas desagradáveis até aquele impulso que o fez levantar pronto pra tomar seu rumo sem as flores. Neste exato momento, Dudu, da calçada, começou a gritar "não faz isso, seu merda! Pega as flores agora! Pega as flores!!! É a tua menina e o teu filho!!! São teus! Pega as flores, AGORA!!!".

Edileuza deixou o quarto. Entrou no elevador; encarou o espelho manchado: "tu não tá com a cara boa. Deve ser alguma pegadinha isso aqui (...) Esse cigarro tá te deixando chupada... Precisa dar uma segurada; o cunhado da Roberta morreu por causa que fumava muito. (...) Então é isso que tu vai ser pra vida toda, né? Puta? Essa vida não é fácil não. Como é que eu fui chegar nisso? 'Cê não pode mais. (...) Mulher é bicho forte, é sempre dura na queda. (...) Mas afinal 'cê tá com uma cara xoxa. Margura, parece margura que não acaba mais...".
Edileuza seguia pr'o ponto; pensava milhares de coisas. Imaginava uma vida diferente daquela; precisava parar com aquilo. Foi para a esquina onde tinham mais duas colegas. Edileuza assumiu Silvana, jogou o cigarro fora e chegou rebolando junto dum carro preto que se aproximava. O esquema era dois pra uma. Silvana se exibia, enquanto observava os garotos e algo a alertava "cuidado! Olha lá! Esses aí não tão com cara tão boa! Quando é mais de um, esse ar de esperto, desconfia! (...)". Apesar de tudo, Silvana estava prestes a concordar quando olhou pra trás pensando ter ouvido alguém chamar-lhe "(...) PÁRA!!! Silvana!!!" e foi então que, de seus lábios tristes, surgiu a resposta para o convite indecente:
-- Hoje não, rapazes. Hoje não.
Uma das meninas virou pra ela e disse:
-- Edileuza, tá lôca?!
-- Eu que não. Quando alguma coisa dentro da cabeça grita mais que o normal, tu tem que parar pra ouvir. E, se eu fosse você, também não dava trela pra esses caras aí não.

Romildo adorava o mar: era um biólogo especializado em vida marinha. Um dia, porém, decidiu mergulhar próximo às pedras, na praia em que ele, a esposa, a filha e a família costumavam passar as férias. O mar estava agitado e ele encontrava-se já um pouco alto, por conta da cerveja; foi quando uma onda forte o jogou contra as pedras e acabou fraturando sua medula. Essas mesmas ondas, acabaram por levá-lo até a praia, desacordado. Desde então, Romildo ficara enfiado numa cadeira de rodas.
A mulher e ele não se davam muito bem, mas levavam o casamento adiante por causa da Mimi. Só que depois do acidente, o que já não era muito suportável, passou à qualidade de intrinsecamente detestável. Romildo era o típico cara mais parado; levava murro de graça, sem se importar muito. A única coisa que o movia de verdade era a filha. A filha e o mar, só que o mar já não era uma constante em sua vida. A mulher lhe torrava a paciência, especialmente agora que ele passava o tempo em casa, desmotivado e inútil. Ele até tentou se bastar como coordenador de pesquisas e tal, mas não aguentou. Sentia muita falta do mar e o seu serviço começou a decair. Tanto decaiu, que Romildo foi despedido. Essa falta de responsabilidade perante a família que o marido também tinha o dever de sustentar e, principalmente, a autopiedade dele irritavam-na profundamente. E ele via isso. Tanto via que, conforme o tempo foi passando, já não lhe era suficiente ficar em casa cuidando da filha, pois aquela sensação de inutilidade e comodismo, frente o olhar reprovador da mulher, começava a incomodá-lo.
A solução imediata que ele achou pra isso foi a ausência. Passava o dia fora; nem cuidar da filha ele fazia mais. Procurava emprego aqui e ali, pra fazer coisas das quais ele nem entendia. Era só pra dizer que procurava e ouvir menos da mulher.
Veio então o dia em que ele foi ao cinema. Passava um filme sobre teatro, com a Denise Fraga e o Luís Melo. No filme, todo o dia a Denise Fraga cumprimentava esse velho sentado numa cadeira com um radinho na mão, na entrada do teatro, e ele respondia "obrigado". Uma merda de filme, enfim.
Foi então que, naquela noite, em casa, Romildo decidiu que queria ficar sozinho de vez. Ele e a mulher brigaram; ela saiu de casa com a Mimi. Um Romildo surgiu à porta do que reconheceu ser seu próprio quarto; flagrou a si mesmo como aquele homem na cadeira de rodas chorando, e disse "é a minha vida e eu preciso pegá-la...".
Olhou em volta, agora enxugando as lágrimas. Sentia-se estranhamente leve.

Dudu levantou bruscamente. Estava suado, respirando rápido; a seu lado, Marília, assustada, perguntava "que foi?! Tá tudo bem, Du?". Na cômoda, as flores que ele trouxera para ela, ao lado do seu paletó abarrotado por causa da corrida.
-- Tá... Tá sim. Eu te amo, Ma.
Ela o abraçou bem forte e os dois voltaram a deitar. Marília pegou no sono rápido; Dudu ficou com Ma nos braços, porém desperto, observando cada canto do pequeno quarto com relativa calma.


Dudu, Romildo e Edileuza jamais se encontraram. A dúvida, o infinito e a porta sem nome são a mesma coisa. O chefe é o cara das respostas fáceis, a quem todo mundo procura, ou por quem todo mundo anseia de vez em sempre. Se o Dudu, o Romildo e a Edileuza o encontraram, eu prefiro deixar a encargo do leitor decidir.

É a loucura, o destino, deus, o diabo, um pressentimento, um anjo, um presságio, a sorte, o chefe? A gente nunca sabe... A gente só sabe que, em questão de 5 minutos, o mundo já girou um tantão assim ó.

vivir sin aire, maná

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