quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A carta que Ana Maria escreveu a Cássio. E que Cássio jamais lerá.

Querido Cássio,

Quando você foi embora, eu entendi as dívidas cármicas e o significado do Natal. Não que eu pudesse, de forma alguma, chorar tanto tempo assim por conta da tua partida. Você me conhecia muito bem pra sentir medo de me magoar... E, em hipótese alguma, me magoaria.
Lembra-se de quando nos conhecemos? Não sei, hoje estou meio "retardatária". Fiquei olhando as nossas fotos de quando pequenos. Sua mãe foi visitar a minha mãe e trouxe você com ela. Naquele dia, eu me aborreci: você não se aproximava de mim e, no entanto, se distraía fácil com tudo. Não precisava dos meus brinquedos, da sua mãe, nem de nada. As suas mãos eram as personagens e você simplesmente se divertia fazendo do nosso sofá uma montanha.
Por algum tempo, devo admitir, o que me aproximava e me arrastava pra longe de ti era um tipo de inveja. Só que isso eu também não preciso admitir, porque você sabe. Eu te contei. Às vezes, acredito realmente que te contei tudo. Talvez esse tenha sido o nosso maior defeito: termos contado tudo um ao outro. Termos tido a liberdade de contar tudo. Não raro, me pergunto quando foi que resolvemos nos dar tanto espaço, mas não obtenho resposta.
Sua mãe pergunta por ti ainda hoje. Ela crê porque crê que você me escreve. E não adianta dizer que nem mesmo eu consigo te encontrar em canto algum - quanto mais receber notícias suas -; ela sempre acha que eu estou mentindo a pedido seu. O que, de certa forma, é bom, porque a conforta.
Por aqui vai tudo bem... O serviço anda a mesma coisa; o bom é que o décimo terceiro está chegando junto com as férias; o Priscilo vai bem, mas creio que ele tá meio necessitado. Esse fim de semana, vou ver como é que faço pra castrar o bichano. Tem andado muito nervosinho, miando de maneira esquista e tals. Mamãe também está ótima.
Ademais, estou saindo com um cara divertido, inteligente, educado e cabelo na cara; bem aquele tipo que eu costumava descrever pra ti nos tempos de colégio. Quem diria que, algum tempo depois, esse passaria a ser o seu tipo também... Enfim, ele promete me fazer esquecer de ti.

Sabe, Cássio, não sei. Você não me deixou saber se eu te afugentei. E isso não me entristece, me deixa é com raiva. De nós dois, você sempre foi o mais reservado, porém não o suficiente pra que eu não pudesse ter noção do que acontecia contigo. Muito pelo contrário, você sempre me deixou saber que eu tinha uma noção clara do que se passava.
Quando eu te confessei, naquele dia, que gostava de você, apesar de todos os pesares, como homem e você vacilou, não conseguiu me encarar no rosto, aí eu soube. Soube que você sentia alguma coisa também, mesmo achando que não podia retribuir em igual moeda. Pelo amor de deus, o que nós tínhamos eu jurava inquebrável. E duas semanas depois daquilo, você partiu. Sem despedida, sem aviso, sem dar satisfação alguma. Sua mãe e eu revistamos o seu quarto atrás de algum escrito, alguma notificaçãozinha idiota sobre algum plano mirabolante que você estivesse compilando, e nada. Nenhum rastro.
Eu não sei se você se apaixonou por alguém, se decidiu abandonar essa cidadezinha pequena e ir ao encontro de algo maior, se arrumou um emprego na Sibéria. São muitos os motivos que levam um menino de 21 anos a sair de casa da noite para o dia.
Há algum tempo – lembra-se? -, você me disse que nós éramos duas sementinhas abandonadas no mesmo vaso, sem crescer muito, com medo da possibilidade de interagir com outras plantinhas, ou mesmo com o sol. Disse que nos arruinaríamos mutuamente por conta desse nosso amor que mais se assemelhava a um compromisso assumido pelo medo do desamparo. Eu te encarei como quem encara um poetinha talentoso. Não levei a sério no momento, e continuamos lá, a dividir o meu travesseiro.
Comecei a dar valor ao que você disse somente algum tempo depois. Porque, a bem da verdade, você sempre foi o meu único e melhor amigo. Contigo, eu me sentia protegida; sentia que as minhas idéias eram sempre bem recebidas, quer fossem ríspidas, imbecis, ofensivas ou bacanas. Não precisava de mais nada, de mais ninguém.
Não sei até que ponto a nossa convivência me prejudicou. Tentei falar sobre isso com a minha mãe, mesmo com outros caras, mas tudo que recebi foi um “ah, então deve ser por isso que os seus relacionamentos amorosos não passam de dois meses...”. Eles ficavam tirando conclusões, apenas. E talvez tivessem razão, mas eu não tive muita paciência para ouvir. Detesto psicodrama barato.
Queria você aqui pra me explicar como isso funciona. Ou então pra ter me dito como é que funcionaria com a gente... É que, agora que você foi, eu tenho sido um pouco mais sozinha. O que não me incomoda, pois às vezes penso que você me preparou pra isso de uma maneira singular: me ensinou que é melhor conviver com quem valha realmente a pena e se sujeitar à solidão na falta, do que correr para o primeiro disposto a servir de companhia, só porque ele próprio precisa de uma.
Se você foi embora porque acreditava que nós éramos mesmo aquelas sementinhas, bem, então eu tenho vontade de te chamar de idiota. E isso pode ser egocentrismo meu pra início de conversa, porque eu bem sei que você tinha grandes planos, assim como eu tenho, mas nunca tive iniciativa de empreendê-los; só que pode também não ser. Deus sabe que você adora se esconder quando algo te aflige. Aliás, deus não sabe de porra nenhuma... Quem sabe sou eu.
E o que eu sei agora não faz grande diferença, afinal você é só uma sombra na sala com quem não posso conversar.

Da sementinha que gostava do nosso vaso,
Ana.

de perto (bang bang)
, paralamas do sucesso

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