terça-feira, 22 de janeiro de 2008

um dos lados

Há dois ou mais anos não olho pra cara do pai. Minto, no fevereiro passado eu tive que conversar com ele durante uma hora e, depois, mais nada. Estava envelhecido. Detesto ver pessoas envelhecendo, me sinto quase adulta e impotente. Falava bobagens, dizia que o julgava; eu respondia, mas era como se não dissesse nada, pois ele falava por cima.
Eu sou capaz de bons dramas, sempre fui. E é fácil as pessoas julgarem os meus motivos, quando o que apresento não passa de um ou outro acesso de raiva em cima do que todo mundo considera aquela mesma novelinha do passado. É quando algo me avisa de que aquele me vê como vítima, aquele quer que eu corte o papo furado para que voltemos a nos divertir, aquele acha que tudo isso não passa de uma besteira que vivo desenterrando sem porquê (que faz parte do meu próprio papel quando na posição de ouvinte) e que aquele está interessado em ouvir, porque eu, um dia, estive ali ao lado, ouvindo quaisquer que fossem as suas lamúrias, ou porque desperto-lhe algum outro interesse. Na angústia, me agarro a esse último e desabo, sem detalhes, pois me canso muito rápido do que tenho pra dizer e do que provavelmente sucedeu entre mim e o pai. Deixo passar, digo que é a Lua em Áries e volto a dançar com os macacos. Não minto, às vezes sinto uma violência por quem me cerca, inclusive - e menos raramente do que aparenta - pela Mãe. Uma sensação que dá pra descrever como um stress enorme, chato, que me lembra o quanto é necessário que eu fuja _ de casa, de qualquer lugar.
O problema é que ninguém está realmente interessado, entende? Vejo todas essas pessoas atrás de alguém em quem confiar, e elas confiam rápido demais, pois não querem perder tempo, querem dançar. Eu sou super liberal, mas o que observo é um amontoado de desesperados ansiando por chamar o mundo de amigo; não é mais questão de ter um amigo em quem confiar... É ter simplesmente alguém em quem despejar segredos, vontades, coisas em que se pensa pra voltar a curtir depois. Sinto-me promíscua, pois confiam facilmente em mim e eu desejo uma reciprocidade quase sempre ausente.
Houve essa vez em que o pai disse que nós éramos parecidos e eu não respondi, pois pensava ser verdade e não queria admiti-la, ao menos não em tom audível. A verdade é que a única coisa que temos em comum é o fato de protegermos o que é nosso, em termos de patrimônio emocional. Fora isso, somos extremamente diferentes e mente quem diz que, algum dia, já nos demos bem. Lembro vagamente dele quando criança: ele nunca estava em casa - saía cedo, viajava e voltava quando já estávamos na cama. Às vezes, eu me preocupava enquanto as luzes do carro não fizessem reflexo pela janela do quarto; noutras, não.
Lembro de um pai frio, que não falava muito com a gente. Guardo os cafés da manhã, aos fins de semana, quando ele fazia pão quentinho. E as noites em que comíamos os pastéis que eu e o Davi ajudávamos a preparar, porque gostávamos de fechar as massas com o garfo. Lembro de quando jogava bola comigo e de quando o amarrávamos à cama, para que não conseguisse levantar.
Costumava ter um humor instável demais, especialmente nos nossos últimos anos na velha casa: ficava nervoso e nos batia sem grandes motivos; começava a tratar muito, mas muito mal a Mãe e eu começava a repeli-lo com maior freqüência quando tentava ser um pouco mais agradável. Sempre o fizera, não sei explicar porquê... Gostava quando fazia pão quentinho e tudo, mas o repelia quando vinha me abraçar, ou dormir na minha cama. Só o abracei por querer - que eu me lembre - duas vezes: em uma, queria ouvir as vozes da conversa na sala do meu avô e me deitei na sua barriga e, na outra, ele me provocou dizendo que eu não saberia dançar. Lembro também que a primeira vez em que fomos ao cinema com ele, assistimos ao Soldado do Inferno e eu me senti super alegre, pois pensava que seria a primeira de muitas vezes, e que eu poderia passar a conhecê-lo como cabe a uma filha conhecer o pai. Tudo ilusão, pois aquele quase-estranho tornou-se um completo estranho na versão piorada.
Tento, entretanto, me ater a essas boas lembranças, só que o acumular dos anos, das disputas na separação, das desfeitas, das brigas, do dinheiro e das lembranças ruins sobressai. Muito disso veio da Mãe, reconheço, mas a culpa não é dela, e sim minha. Fui eu quem se deixou levar, não somente pelas próprias faltas, ausências et ceteras, como também pelo que ela sentia. Sempre soube disso e, realmente, não preciso que as pessoas fiquem lembrando de que minha "devoção" por essa menina chega a me atrapalhar, contudo isso é o que aparenta ficar exposto nos meus acessos. Talvez porque eu a mencione sempre, pra tudo... Ela, sem querer, vira um motivo e, de repente, eu não me sinto mais filha: sou a mãe, da pior maneira possível.
Todo mundo tem coisas a dizer, de maneiras diferentes, sobre diferentes assuntos e acontecimentos. O desequilíbrio descende da opinião que tu assume logo de cara.
"você não pode negar que ele é seu pai; pois eu acho que você devia colocar um processo em cima dele; daí você fala pr'o teu pai que (...); o Davi não tem a mínima cabeça pra falar com ele, você é quem tem que dizer; ele é um sacana, protozoário; por exemplo a minha prima: o pai dela foi embora quando ela tinha 3 anos de idade e nunca mais deu notícias (...); mas então, há quanto tempo você não vê ele? ah, mas tem que ver, é seu pai; você tem que resolver esse conflito, isso pode te atrapalhar no futuro; olha, não sinta pena, eu também sentia pena do meu pai, e... e... bem, o teu pai não presta" - é o que a gente ouve, sabe?
Como pode uma figura praticamente estranha representar tanta coisa e pra tanta gente ao mesmo tempo? E, pior, como pode essa figura me afetar tanto? Tenho uma imagem minada dele; não posso simplesmente guardar as pouquíssimas coisas, não. Sempre o trazem à tona pra mim - incessantemente. É como se não pudesse deixá-lo de lado, pelo menos não do lado que julgo certo, e é como se não pudesse chorar, ou não pudesse nem ao menos dizer que "cara, eu queria um pai assim" sem que me fizessem lembrar que eu tenho o meu, e que ele é frio, desequilibrado, ruim e mesquinho. Um estranho, ele podia ser apenas um estranho.

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