-- eu quero intimidade; você tem que confiar em mim.
ele dizia exatamente assim. eu ficava constrangida. a gente entende intimidade por muitas coisas e eu nunca fui muito íntima de ninguém. então eu respondia que não se exige confiança assim tão rápido.
acho que ele queria que fosse rápido porque estava mais velho do que pensava...
ao tentar definir confiança, na pele dele eu diria que procuro alguém com quem dividir uma verdade exclusiva, sobre a qual tivéssemos de mentir. claro, porque a mentira torna tudo mais interessante.
sempre houve ali uma admiração mútua. éramos parecidos desde que eu me lembrava; dois exclusivistas solitários, desleixados, obcecados por ideias, com egos monumentais (...) é... seria bom ter um amigo assim; parecido comigo (pra variar) e mais íntimo, enfiado nas minhas tralhas.
já houve quem me dissesse coisas tão bonitas quanto ele, mas não tão irredutivelmente. ele dizia que o meu carinho era a minha melhor parte e que eu faria melhor se não me reservasse tanto. "são características contraproducentes", completava. falava que via o meu cuidado com sei lá quem e eu suspeitava que tivesse ciúmes do que eu explicitava em determinadas ocasiões por determinadas pessoas. eu me sentia verdadeiramente notada. e não, não é pela massagem de ego; é pelo fato de um quase-estranho-ridiculamente-familiar ter me sacado o suficiente pra dizer as mesmas palavras que eu usaria, se pudesse falar algo bom a meu respeito estando na pele de uma terceira pessoa.
-- me conta algo que você nunca disse a ninguém.
mas que fissura, eu pensava. acho que ele realmente precisa da minha confiança. tinha vontade de perguntar por que, mas temia que ele respondesse que queria nos esconder. e depois temia que aquele fosse um simples jogo sujo... e eu finalmente respondia que, mesmo se contasse todos os meus segredos, ele não teria nada. ele dava uma risada irônica.
os dias prosseguiam assim. eu no escritório dele, analisando contas, mexendo em tabelas. ele se aproximava, trazia o almoço e ficava papeando comigo. falava pracaraleo. dizia que era pra compensar o meu silêncio. e fazia dessas observações sacais que me confundiam. ele não tinha ideia das coisas que aconteceram comigo e, no entanto, como que me adivinhava.
em dado momento, comecei a suspeitar de que, no fundo, no fundo, ele falava de si mesmo. isso me irritava... porque é exatamente o que eu faço. e faço com aquela panca de quem tem mais dez truques na manga. ele também fazia e sabia que fazia. era brincar com um espelho.
o problema é que havia mais alguém. uma pessoa em comum, que ele conhecia bem e eu também. ele me pedia intimidade, com a desculpa de que eu não poderia nunca dividir certas coisas com essa terceira pessoa. coisas sobre nós, que nós confidenciaríamos. feito um peão de tabuleiro de xadrez, eu fingia que não, mas já estava enfurnada num jogo sujo. talvez fosse a curiosidade, entende? eu sou muito curiosa e levo tudo até a última gota, pra ver onde vai dar, onde poderia ter dado. e talvez fosse também um resquício de fé... eu podia confiar nele, ele não me faria mal.
-- eu quero intimidade. confia em mim.
era um pedido insistente. e, de certa maneira, eu dividi coisas com ele. falei, inclusive, desse alguém. muito do que eu pensava sobre o meu "cuidado" para com essa pessoa. ele passava as tardes me falando da vida dele, das coisas que pensava e eu tomava conta da música. ele me achava muito diferente para a minha idade e me comparava à filha: "26 anos, completamente sem cérebro".
ouvíamos Yann Tiersen; ele sentava numa cadeira, olhando para o teto. e aquele silêncio... aquele silêncio vivo e cheio de contemplação... por mais que a situação tendesse ao oposto, por uns minutos eu construía uma imagem nítida do que era realmente a amizade. e me iludia com aquilo tudo, achando que eu podia fazer com que as coisas ficassem exatamente daquele jeito.
mas não podia, não. ele se aproximava novamente e pedia pra que eu confiasse nele. e eu nunca fui de demorar muito pra perceber: eu sabia exatamente qual o tipo de intimidade que ele queria... e conhecia a mentira que nós contaríamos.
numa dessas tardes, ele entregou a intenção.
-- vem cá. me dá um beijo.
acho que ele queria que fosse rápido porque estava mais velho do que pensava...
ao tentar definir confiança, na pele dele eu diria que procuro alguém com quem dividir uma verdade exclusiva, sobre a qual tivéssemos de mentir. claro, porque a mentira torna tudo mais interessante.
sempre houve ali uma admiração mútua. éramos parecidos desde que eu me lembrava; dois exclusivistas solitários, desleixados, obcecados por ideias, com egos monumentais (...) é... seria bom ter um amigo assim; parecido comigo (pra variar) e mais íntimo, enfiado nas minhas tralhas.
já houve quem me dissesse coisas tão bonitas quanto ele, mas não tão irredutivelmente. ele dizia que o meu carinho era a minha melhor parte e que eu faria melhor se não me reservasse tanto. "são características contraproducentes", completava. falava que via o meu cuidado com sei lá quem e eu suspeitava que tivesse ciúmes do que eu explicitava em determinadas ocasiões por determinadas pessoas. eu me sentia verdadeiramente notada. e não, não é pela massagem de ego; é pelo fato de um quase-estranho-ridiculamente-familiar ter me sacado o suficiente pra dizer as mesmas palavras que eu usaria, se pudesse falar algo bom a meu respeito estando na pele de uma terceira pessoa.
-- me conta algo que você nunca disse a ninguém.
mas que fissura, eu pensava. acho que ele realmente precisa da minha confiança. tinha vontade de perguntar por que, mas temia que ele respondesse que queria nos esconder. e depois temia que aquele fosse um simples jogo sujo... e eu finalmente respondia que, mesmo se contasse todos os meus segredos, ele não teria nada. ele dava uma risada irônica.
os dias prosseguiam assim. eu no escritório dele, analisando contas, mexendo em tabelas. ele se aproximava, trazia o almoço e ficava papeando comigo. falava pracaraleo. dizia que era pra compensar o meu silêncio. e fazia dessas observações sacais que me confundiam. ele não tinha ideia das coisas que aconteceram comigo e, no entanto, como que me adivinhava.
em dado momento, comecei a suspeitar de que, no fundo, no fundo, ele falava de si mesmo. isso me irritava... porque é exatamente o que eu faço. e faço com aquela panca de quem tem mais dez truques na manga. ele também fazia e sabia que fazia. era brincar com um espelho.
o problema é que havia mais alguém. uma pessoa em comum, que ele conhecia bem e eu também. ele me pedia intimidade, com a desculpa de que eu não poderia nunca dividir certas coisas com essa terceira pessoa. coisas sobre nós, que nós confidenciaríamos. feito um peão de tabuleiro de xadrez, eu fingia que não, mas já estava enfurnada num jogo sujo. talvez fosse a curiosidade, entende? eu sou muito curiosa e levo tudo até a última gota, pra ver onde vai dar, onde poderia ter dado. e talvez fosse também um resquício de fé... eu podia confiar nele, ele não me faria mal.
-- eu quero intimidade. confia em mim.
era um pedido insistente. e, de certa maneira, eu dividi coisas com ele. falei, inclusive, desse alguém. muito do que eu pensava sobre o meu "cuidado" para com essa pessoa. ele passava as tardes me falando da vida dele, das coisas que pensava e eu tomava conta da música. ele me achava muito diferente para a minha idade e me comparava à filha: "26 anos, completamente sem cérebro".
ouvíamos Yann Tiersen; ele sentava numa cadeira, olhando para o teto. e aquele silêncio... aquele silêncio vivo e cheio de contemplação... por mais que a situação tendesse ao oposto, por uns minutos eu construía uma imagem nítida do que era realmente a amizade. e me iludia com aquilo tudo, achando que eu podia fazer com que as coisas ficassem exatamente daquele jeito.
mas não podia, não. ele se aproximava novamente e pedia pra que eu confiasse nele. e eu nunca fui de demorar muito pra perceber: eu sabia exatamente qual o tipo de intimidade que ele queria... e conhecia a mentira que nós contaríamos.
numa dessas tardes, ele entregou a intenção.
-- vem cá. me dá um beijo.