quarta-feira, 24 de junho de 2009

superpoderes

Quando eu era pequena, cismava que conseguia ver o mundo girando. E corria chamar a Mãe, pra ver se ela notava. Dizia que ela tinha que se concentrar no azul e não nas nuvens. Ela olhava um pouco – os adultos nunca olham tempo suficiente pr’aquilo que a gente aponta – e concluía que eu estava apenas observando o vento empurrar as nuvens em contraste com o azul. Eu dizia que não, que era ela quem não via, então ela dizia que tinha coisa gostosa na cozinha e o assunto se encerrava ali. É realmente muito fácil me fazer calar a boca...
Eu também cismava que conseguia enxergar as bactérias. Chamava a Mãe e perguntava se ela estava vendo a bactéria passando bem na ponta do meu nariz. E ela dizia que era bem provável que houvesse bactérias em tudo que é lugar do meu nariz, mas que, se eu estava vendo algo diferente do usual, é porque estava vesga. Então eu respondia que aquilo não era ficar vesga, era sim um modo secreto de olhar as bactérias. E novamente o assunto se encerrava quando ela mencionava a cozinha.
Daí veio o dia em que eu utilizei meu método de enxergar bactérias à noite. Nunca me ocorreu que eu dependesse da claridade do Sol para vê-las. E eu fiquei testando o método secreto até sentir que meus olhos iam quebrar. Por algum motivo, eu não as via. Daí corri chamar a Mãe pra perguntar o que tinha acontecido, mas resolvi ficar quieta na hora. Pensei comigo que ela ia falar dos meus olhos quebrados e dizer algo sobre elas serem invisíveis. Larguei de mão e decidi retomar o teste pela manhã. Aproveitaria, igualmente, pra ver se o mundo ainda girava – à noite, eu não podia sair de casa pra me certificar de que o mundo continuava girando, mas também não me importava, pois ficava tudo muito escuro pr’eu ver qualquer coisa.
Pela manhã, o mundo ainda girava e eu consegui ver as minhas bactérias. O que eu não entendia era por que motivo não as vira de noite, se na escola e em casa todo mundo dizia que elas estavam em toda parte a todo o momento.
Bem... Isso foi um dilema na minha vida e eu só obtive resposta quando me toquei de que o Sol é o pai de todas as cores e efeitos ópticos para sacar que o que eu via eram manchinhas transparentes decorrentes do encontro da luz com aquelas coisas que você (não) enxerga quando fica vesgo. E, afinal, o que eu via girar também não era o mundo. Bastou olhar pr’o céu num dia sem nuvens... O azul fica parado.
Não preciso nem dizer o impacto que isso teve sobre a minha pequena pessoa. Foi trágico; acabei subtraindo um monte de superpoderes por conta da razão. Minhas únicas habilidades especiais remanescentes eram a de catadora de pecinhas de Lego que o Davi perdia pela sala e, claro, o serviço de tradutora que eu prestava aos meus pais quando ele balbuciava um dialeto babão.
Comecei a aprender a ser grande. Ser grande era entender das coisas. Depois a gente descobre que não, que é entender menos, mas, ok, vamos relevar essa parte. Deixei as bactérias; o mundo girando; as acrobacias tortas (eu tinha uma estrela e uma cambalhota que eram de matar... literalmente); a toalhinha com capucho que servia de capa; os planos infalíveis para entrar na cozinha enquanto meus pais ainda dormiam, e passei a me dedicar ao estudo das coisas. E observei coisas muito interessantes. Por exemplo, notei que a água que corre para o ralo corre num sentido só e que essa água que sai da torneira é a mesma que passa no rio, que enche por causa da chuva. Então corri perguntar pra Mãe por que a água corria num sentido só e como é que se fazia chuva. E ela me disse que a Terra tinha ímãs gigantes que faziam a água girar em determinados sentidos. E eu achei a explicação meio fajuta, porque, veja bem: por algum motivo, não faz sentido eu dizer que enxergo bactérias, mas faz todo o sentido do mundo dizer que a água corre pr’um único lado, só porque tem um íma de geladeira gigante lá na ponta do iceberg... Hello-o, até eu, que tenho um senso crítico totalmente prejudicado, sei que não tem coisa mais ridícula. Mas tudo bem.
... Então ela disse que a chuva só se fazia chuva por conta dessa água do rio, que é a mesma que sai da torneira. Daí eu pensei um pouco e quis saber: se a água da chuva é a mesma do rio e a do rio é a mesma da torneira, isso quer dizer que é sempre a mesma água e que ela enche uma quantidade limitada de nuvens, rios e torneiras... Que se faz se a gente beber tudo? Mamãe ficou mudinha e aí eu entendi que ninguém entende realmente nada.

Larguei de mão dessa ideia de entender das coisas. Esperto foi o cara que, pra evitar maiores compromissos, inventou a expressão “é tudo muito relativo”. Comecei a debandar pelo mundo, que não mais girava e, ironicamente, passei a desenvolver, certo que muito aos pouquinhos, outros superpoderes.
Tipo o superpoder de ler bons amigos. E um outro, que se chama paciência – com os bons amigos, inclusive. E o superpoder de abrir potes de conserva sozinha. Acho que, basicamente, foram esses e uns outros de menor importância...
De vez em quando, eu ainda fico vesga pra lembrar das bactérias que eu via, mas confesso que é só pra não perder o hábito de brincar com o Sol. Ah, e o mundo voltou a girar, sim. Só que agora eu percebo isso olhando as pessoas muito mais do que o céu...

2 comentários:

Artur Gelumbauskas disse...

Bonita história!
Interessantes modos de ver o mundo girar... =D

Bonie disse...

Uau.

(Isso é tudo que eu sou capaz de dizer pra manifestar tudo tudo tudo que passou pela minha cabeça lendo esse post).