segunda-feira, 9 de março de 2009

a última pessoa a ler o livro

Uma das coisas que eu mais gosto em livros de biblioteca, ou livros velhos no geral, é ver as anotações pelos cantos e sublinhados de todo tipo. Às vezes, a ideia sublinhada no texto nem é tão boa e a anotação, pior ainda. Mas, de qualquer jeito, é legal. E não é porque é de biblioteca que um livro vai ficar sem rabiscos adicionais pela eternidade. Vai por mim, isso não dá certo. E, pior, não faz bem.

Eu vou lendo e montando um perfil. Por exemplo, o livro que peguei recentemente, "Sempre Alerta", dum tal de Jorge Claudio Ribeiro, é meio didático-reportagem, o que me leva a crer que o último leitor era um estudante de comunicação. Ok, óbvio. Entretanto, o que vocês não sabem é que, assim como eu, ele (ou ela, mas eu acredito que seja ele) é um leitor entediado.
Nas primeiras páginas, nós vemos sublinhados mais frequentes, denotando um certo entusiasmo. São linhas tortas e que tentam fugir àquela clara noção de reta, o que me leva a crer que era realmente um menino. Meninas conservam capacidades motoras mais esclarecidas em se tratando de anotações e linhas: elas querem a coisa mais caprichada e, por isso, levam mais tempo pra fazer o rabisco.
Além disso, ele passa de caneta preta para azul, para lapiseira, para lápis; não há aquela paranoia com um padrão.
Acabo de ler a página 95 e, logo abaixo do texto, há uma linha azul que aponta para absolutamente nada. Tédio.
Eu imagino que esse moço demorou uns três, quatro dias pra ler o livro e que, durante esse tempo, o carregou de lá pra cá na mochila, pois as pontinhas das folhas estão sujinhas e a capa, meio arrebentada, o que me leva a pensar que foi mesmo obra de uma mala entupida de outras coisas. Não, não... Menina não rola, porque a maior parte delas usa bolsa.
Eu imagino que ele deve ter sentado na mesa da cozinha, naquela hora do dia em que não aparece nada de interessante na tv e as músicas do computador ficam tocando a esmo, sem qualquer novidade ou refrão chiclete. E ele ficou lá lendo sobre o Estado de São Paulo e o Projeto Folha, porque, em algum momento, alguém determinou que é importante saber sobre a importância disso, ainda que a grande notícia do dia dele não tenha passado de uma multa por atraso de devolução de material na biblioteca: um filme que ele não teve tempo de assistir, com o título pretensioso de ‘Intolerância’.
Esse cara não deve ser mais velho que eu. Ultimamente, eu ando mais velha que todo mundo. Vinte anos não é muito; mas é um terço da vida de quem pretende chegar aos 60. Sessenta, sim, é muito. Eu só chamo alguém de velho quando esse alguém completa sessenta anos. Quando a minha Mãe chegar lá, passo a considerar velho quem chegar nos setenta, e assim por diante.
Mas, enfim, penso que ele deve ter mais ou menos as mesmas preocupações que eu: dinheiro + gandaia. Estes têm sido, ultimamente, os únicos combustíveis dessa juventude - a minha inclusa. E, secretamente, ele realmente gostaria que ela fosse um tantinho mais transviada.
Ele faz parte daquela massa que passa nos projetos do futuro: aqueles 10% da população (e eu estou sendo bastante generosa) que, consideravelmente inteligentes, alcançam o ensino superior e pagam uma nota preta pra aprender que ninguém é dono de verdade alguma, se essa verdade não aparecer na televisão.
É o que tá escrito no "Sempre Alerta", aliás é o que tá escrito em grande parte dos relatos jornalísticos acerca do trabalho jornalístico. Aliás (2), deixa eu fazer uma pequena anotação de canto aqui, nessa página 95, onde o tédio do meu colega fez um risco de caneta azul. "SOMOS TODOS MICHÊS DO MERCHAN".

Folheando daí em diante, você não encontra mais nada, nenhum tracinho. E não é que haja qualquer anotação infeliz; a anotação infeliz é da minha parte para os próximos.
Esse cara foi simplesmente mais esperto, percebeu que ‘tava sendo ludibriado, devolveu o livro e foi ser astronauta.

Adoro quando a leitura realmente modifica o homem.

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